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PRÁTICAS
MILENARES DE PESCA NO PANTANAL
Manoel Alexandre Garcia da
Silva,
Maria Angélica de Oliveira Bezerra,
Agostinho Carlos Catella
Os estudos sobre a formação do
clima do Pantanal indicam que, na transição do Período Pleistoceno para
o Holoceno, cerca de 11 mil anos atrás, a região tornou-se um ambiente
mais úmido e mais quente. Nesse processo, organizaram-se os sistemas de
drenagem, com o estabelecimento dos rios permanentes, dos sistemas de
lagos
e do ciclo hidrológico de cheias e secas da região,
como indicam os estudos dos sedimentos antigos de lagoas do Pantanal
realizados pela Professora Maria Angélica de Oliveira Bezerra do CPAN -
UFMS.
O ciclo hidrológico ocasiona a alteração do nível
dos rios ao longo do ano, em decorrência do escoamento das águas do
período chuvoso. Esse fenômeno, que corresponde ao “pulso de inundação”,
tornou-se o principal fator natural do Pantanal, condicionando a
disponibilidade de ambientes aquáticos e terrestres, a abundância e a
distribuição da fauna e flora, influenciando, também, a ocupação humana
da região. Durante as cheias, que podem durar até seis meses, ocorre o
transbordamento dos rios e canais fluviais para a planície de inundação,
cobrindo a vegetação.
Os povos indígenas pré-coloniais, que povoaram o
Pantanal em tempos remotos, estabeleciam suas famílias, sobretudo,
próximos aos cursos d’água. Entretanto, para isso, precisavam estar
livres da inundação durante a cheia e tinham três alternativas: poderiam
mudar-se para uma região mais elevada, distante do rio e próximo às
morrarias, deslocar-se grandes distâncias em direção ao planalto ou,
ainda, enfrentar as cheias construindo terrenos mais elevados na
planície de inundação.
As análises de sítios arqueológicos do
Pantanal sugerem que a terceira opção foi muito utilizada. Há
indicativos que a ocupação humana da região tenha sido mais numerosa no
passado do que é nos dias atuais, com aldeias indígenas espalhadas pela
planície, livres da inundação por elevações de poucos centímetros de
altura. Muitas dessas elevações, tão comuns no Pantanal, são
reconhecidas como um tipo de sítio arqueológico denominado “Aterro”.
Acredita-se que esses Aterros tenham sido construídos pelos povos
indígenas, que retiravam porções de solo de áreas circundantes, usando,
inclusive, conchas de moluscos, de modo semelhante aos sambaquis
litorâneos e amazônicos, porém em escala menor. Para o homem, morar nos
Aterros representava estar próximo dos cursos d’água e livre das
enchentes, o que garantia sua estabilidade na região, tanto no período
de seca como durante a cheia, permitindo explorar os recursos de modo
mais eficiente. A maioria dos Aterros indígenas está localizada próximo
às lagoas permanentes da margem direita do rio Paraguai, áreas, ainda
hoje, bem conservadas.
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As primeiras populações indígenas
pré-coloniais, que exploraram diretamente os recursos do Pantanal,
estabeleceram-se há cerca de 8.000 anos antes do presente (A.P.). Um
longo intervalo sem indicação de ocupações seguiu-se até,
aproximadamente, 5.000 anos A.P., quando surgiram assentamentos de
populações na planície de inundação. Os sítios arqueológicos no Pantanal
são um testemunho do tipo de vida dessas populações e foram ocupados por
dois grupos culturalmente bem definidos: os pré-ceramistas e os
ceramistas. Através de análises de remanescentes faunísticos (restos de
animais) provenientes desses sítios, observou-se que tanto os
pré-ceramistas como os ceramistas utilizavam peixes e moluscos como seu
principal alimento. Alguns animais terrestres, incluindo répteis, aves e
mamíferos, também foram utilizados, porém em menor quantidade. A maior
ocorrência de peixes nos sítios arqueológicos se explica pela abundância
dos recursos pesqueiros no ambiente, uma vez que as planícies de
inundação são ambientes ecologicamente muito produtivos. Isto reflete,
também, um amplo conhecimento dos sistemas hídricos e da distribuição
dos animais por parte dos habitantes do Pantanal em tempos antigos.
Entretanto, apenas conhecer o ambiente não
bastaria para obter os recursos necessários, era preciso desenvolver
técnicas de captura do alimento que favorecessem cada vez mais os
indígenas, garantindo a estabilidade de ocupação dos sítios. A
agricultura poderia ser praticada por esses povos, porém o ciclo de
cheia e seca certamente limitava essa atividade. A partir de,
aproximadamente, 3.000 anos A.P., com a ocupação do Pantanal pelos povos
ceramistas da Tradição Pantanal, observa-se maior freqüência dos peixes,
associada à presença de estruturas manufaturadas em argila, que
provavelmente foram “pesos de rede de pesca” utilizados na captura dos
peixes para alimentação. Nesse período tem início uma atividade de pesca
mais intensa e regular no Pantanal.
Nesses sítios, observa-se que entre os peixes
capturados ocorre uma ampla preferência por exemplares das famílias
Pimelodidae (bagres) e Doradidae (bagres com uma fileira de placas
ósseas sobre as laterais do corpo), que são peixes de ampla distribuição
e abundância no Pantanal e vivem próximo ao fundo. A captura de peixes
pelos povos indígenas pré-coloniais foi desenvolvida com auxílio de
redes de pesca (cujo uso se pode inferir a partir da ocorrência dos
pesos de rede) e também por arco e flecha, pois pontas de projétil são
encontradas com muita freqüência nos sítios arqueológicos do Pantanal.
Muitas pontas de projétil foram fabricadas a partir de acúleos
(espinhos) das nadadeiras peitorais e dorsais de peixes. Sem dúvida, os
peixes forneciam muito mais do que alimento, sendo utilizados como
matéria-prima na confecção de instrumentos para diversas finalidades e
adornos.
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Esse vasto conhecimento não se perdeu no Pantanal.
Ele vem sendo acumulado e transmitido de pai para filho ao longo das
gerações, sendo os pescadores profissionais artesanais seus principais
herdeiros. Esses pescadores identificam os cardumes observando o
movimento superficial da água, conhecem os métodos específicos para
capturar cada espécie de peixe. Eles fabricam os próprios instrumentos
de pesca, levantam acampamentos aproveitando os recursos locais,
utilizam várias plantas nativas para remédios e aproveitam suas fibras.
Os pescadores conhecem as propriedades de madeiras para diversas
finalidades e os hábitos dos animais, além de possuírem um acurado senso
de orientação. Esse saber, identificado como “conhecimento ecológico
tradicional - CET”, é cada vez mais valorizado e reconhecido nos meios
acadêmicos como uma fonte complementar de conhecimentos para subsidiar
atividades de manejo e conservação de recursos naturais e recuperação
ambiental. Segundo os pesquisadores J. Ford e D. Martinez (revista
Ecological Applications, outubro de 2000) trata-se de um saber
eminentemente prático, pois, longe de ser um corpo estático de
conhecimentos, o CET precisou ser altamente adaptativo para servir às
necessidades das populações humanas através de longos períodos de tempo.
Em decorrência da alta produção natural do
ecossistema, no presente, os recursos pesqueiros são utilizados por
diferentes setores da pesca no Pantanal. Os pescadores profissionais
artesanais, assim como os pescadores pré-coloniais, são os provedores,
atuando como o elo entre o peixe do rio e as pessoas consumidoras.
Ocorre, ainda, a pesca amadora e a pesca de subsistência, que cumprem
importantes e diferentes papeis econômicos e sociais na região. Contudo,
a cadeia produtiva do pescado no Pantanal e no País, de modo geral,
encontra-se em fase de re-estruturação. Urge ordenar as etapas de
produção (extrativa e cultivada), beneficiamento e distribuição do
pescado. Essa missão está sendo capitaneada pelo novo Ministério da
Pesca e Aqüicultura - MPA, criado em 2009, e deverá preencher a lacuna
deixada pela extinção da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca –
SUDEPE em 1989. Atuando nessa direção, a
Embrapa
Pantanal (Corumbá - MS), Unidade da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa, vinculada ao
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA é parceira do
MPA e outras instituições na execução de projetos de pesquisa que visam
levantar informações sobre a atividade em toda a Bacia, a fim de
planejar um sistema de monitoramento federal, com base nas experiências
atuais, para subsidiar políticas para o setor.
Em suma, os registros arqueológicos atestam
que em períodos muito anteriores à colonização da região pelos europeus,
a atividade de pesca já era uma prática comum dos moradores do Pantanal,
refletindo-se em sua economia e cultura e apontando a aptidão da região.
Os saberes dessa prática foram acumulados ao longo das gerações,
consolidando um vasto conhecimento ecológico tradicional, que foi
conservado até os dias de hoje através do uso pelos pescadores
profissionais artesanais. Esse conhecimento constitui um verdadeiro
patrimônio cultural sobre a região, que deve ser considerado juntamente
com os conhecimentos científicos nas tomadas de decisões sobre a
atividade. Com a criação do MPA e o respaldo da lei nacional e leis
estaduais de pesca de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, atravessamos um
momento muito oportuno no País e nos Estados para a definição de
políticas de pesca baseadas no uso e na conservação dos recursos e no
equilíbrio entre os interesses dos diferentes setores da pesca.
Manoel Alexandre Garcia da Silva
(manoel_alex@hotmail.com)
- SED-MS
- Secretaria do Estado de Educação de Mato Grosso do Sul
Maria Angélica Bezerra (maob@ceuc.ufms.br)
- CPAN-UFMS
Agostinho Carlos Catella, (catella@cpap.embrapa.br)
- Embrapa
Pantanal.
Reprodução autorizada desde
que citado a autoria e a fonte
Dados para citação
bibliográfica(ABNT):
SILVA, M.A.G. da; BEZERRA, M.A.; CATELLA,
A.C.
Práticas
milenares de pesca no pantanal.
2010. Artigo em Hypertexto. Disponível em: <http://www.infobibos.com/Artigos/2010_3/pesca/index.htm>.
Acesso em:
Publicado no Infobibos
em 25/09/2010
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